Uma das coisas que mais sinto falta do começo do Brushwork Atelier é escrever posts sobre temáticas que me fascinam na arte. Foram mais de 50 posts onde tentei destrinchar os assuntos em uma estrutura mais fácil de compreender, alguns ficando um “pouquinho” mais longos que outros. Quero trazer uma experiência semelhante aqui para o Substack, onde muitos dos conteúdos que estou planejando serão textos complementares aos meus vídeos lá no Clube Brushwork Atelier, nossa área de membros do canal do YouTube, mas que farei questão de deixar interessantes e didáticos para quem não fizer parte.
Um dos primeiros conteúdos que estamos estudando por lá é o livro Perspective Made Easy (https://amzn.to/4hZC9MJ), publicado originalmente em 1939. Apesar de parecer datado, os conceitos são praticamente atemporais e o mesmo se encontra em domínio público, facilitando o acesso e utilização das imagens para ilustrar conceitos.
Quem me acompanha a mais tempo sabe que eu, por ter uma formação em engenharia, sempre foquei bastante nos aspectos técnicos da Perspectiva (que vou discutir mais pra frente nesse post). Agora um pouco mais velho e mais maduro, vejo a dificuldade de abordar estes conceitos desde o começo do aprendizado, principalmente para quem não tem o interesse em focar em aplicações mais técnicas do desenho de perspectiva, como carros e outros objetos “hard surface”, então certamente o Perspective Made Easy foi um “achado” que descobri na releitura.
Um exemplo claro disso é a imagem abaixo. Imagino que um Scott Robertson ou um Marcos Mateu-Mestre, ou quem sabe até um Andrew Loomis, nunca trariam uma representação tão lúdica da relação entre o observador, o eye-level, a linha do horizonte e seu eventual impacto na representação dos objetos da cena.
Essa reflexão mudou a minha forma de ver o ensino da perspectiva e ditou o tom do primeiro vídeo que fiz sobre o assunto (abaixo), que ficou público por um tempo (alguns podem ter visto) e agora faz parte do acervo do Clube.
A forma como cada artista é exposto ao aprendizado dos conceitos fundamentais da perspectiva vai ditar a forma como vemos e como nos relacionamos com essa ferramenta e consequentemente com o desenho como um todo. É aquela boa e velha questão de pessoas que fogem de cenários, de escorço ou de qualquer coisa que envolva colocar uma linha do horizonte no processo.
No restante desse post, quero mergulhar em cada um dos conceitos que pra mim devem ser os primeiros a serem compreendidos e como vejo que esse aprendizado pode ser mais prazeroso. Se quiser uma explicação mais visual, assim como mais exemplos de aplicações reais, seja em fotos ou peças de artistas renomados, recomendo conhecer o conteúdo do Clube.
Mas antes de se aventurar na perspectiva, eu recomendo fortemente que qualquer artista, principalmente os iniciantes, tenham explorado um pouco do desenho de observação com base em metodologias como Charles Bargue, Sight Sized, Block-In ou, como sempre recomendo, o Desenhando com o Lado Direito do Cérebro da Betty Edwards. Vamos explorar um pouco desses conceitos que vão nos ajudar e, para vivermos um momento nostálgico, segue uma review publicada 9 anos atrás.
Esse livro muitas vezes é visto com bastante preconceito, mas sinceramente ainda acredito ser o recurso mais lúdico no aprendizado dos conceitos básicos de observação, desconstruindo um desenho em ângulos, proporções, espaços positivos e negativos, assim como pensando a relação com o todo, inclusive com a borda do desenho.
No livro Art & Fear, que também fizemos uma extensa review lá no Clube, os autores exploram essa questão de que existem dois tipos de artistas, os que perceberam a relação do desenho com a borda (principalmente de mídias tradicionais), aplicando cada linha/pincelada em função da mesma, e aqueles que ainda não perceberam, que vão não só entortar os desenhos para caber no papel, mas também ignorar a influência do todo na composição de cada obra.
Como podemos ver no exemplo da cadeira abaixo, que se não me engano está no livro da Betty Edwards, podemos chegar em um desenho “em perspectiva” sem pensar em pontos de fuga, linha do horizonte, posicionamento do observador ou qualquer outro conceitos, simplesmente aplicando uma leitura desses ângulos da vida real.
Muitos artistas atuais e mestres do passado, principalmente os que focaram em trabalhos de observação ou que acabaram indo para linhas mais abstratas, utilizam muito mais esses conceitos bidimensionais em suas obras, ao invés da abordagem construtiva, tridimensional, racional (o que a Betty Edwards separa entre lado direito e esquerdo), mas ainda assim preservam a sensação de volume.
Fiz um vídeo recente sobre os trabalhos do Sargent na infância, principalmente sobre esse abaixo que foi provavelmente todo baseado em suas habilidades de observação e não no conhecimento de desenho de formas tridimensionais ou até mesmo anatomia animal. Mesmo assim, conseguimos perceber todos os volumes e até músculos na obra.
É interessante também ver no vídeo que a observação é bem dependente do não movimento do que está sendo representado e na evolução do Sargent dá pra ver o quanto ele “apanhou” de modelos que não queriam posar por muito tempo, sejam pessoas impacientes ou animais vivendo sua vida.
O desenvolvimento das habilidades de memória, como discutido no livro Memory Drawing (que infelizmente tem um preço abusivo na Amazon), podem ajudar a “completar” certas lacunas e aos poucos o desenho de observação mesmo de modelos em movimento fica mais sólido.
Por outro lado, existem metodologias como a do Andrew Loomis, seja para a ilustração com modelos e principalmente quando estamos pensando em desenhos de criação/imaginação, que combinam os fundamentos bidimensionais com conceitos construtivos, tridimensionais. É como na imagem abaixo, parte do livro Perspective Made Easy, onde ao invés de desenhar 4 linhas verticais e horizontais, utilizamos 9 linhas em diferentes inclinações para dar a sensação de um “tijolo”ou uma caixa sólida. Passar a ilusão que temos 3 planos diferentes, o que é reforçado no desenho através do uso do valor mais escuro. Esse é um conceito que deixaremos para outro dia, mas como diria Scott Robertson, “Value Change = Form Change”.
Para descobrir qual o ângulo certo de inclinação de cada linha, podemos utilizar a observação ou partir para conceitos físicos/ópticos que nos apresentam que linhas paralelas no “mundo real”, convergem para um mesmo ponto quando observadas. Ou seja, espaços tendem a ficar cada vez menores entre duas linhas quanto mais longe estão do observador, até que se encontram em um ponto. A esse ponto damos o nome de ponto de fuga e muitas vezes ele vai se localizar no que chamamos de linha do horizonte. São os princípios básicos do que damos o nome de perspectiva.
O caso acima é super semelhante as famosas imagens de trilhos do trem, constantemente associadas ao estudo da perspectiva. Trens tendem a percorrer superfícies planas e retas por longas distâncias para aumentar sua eficiência. Consequentemente, temos um ótimo exemplo de estudo de linhas paralelas na realidade que onde o espaço entre elas vai ficando cada vez menor, até que se encontrem no ponto de fuga na linha do horizonte.
No caso da imagem abaixo, percebemos que a linha do horizonte bate com a altura do olhar da figura na cena e consequentemente com a altura de um observador que estaria também em pé sobre os trilhos do trem, atrás da figura representada.
Se o observador estiver olhando de qualquer outra altura, inclusive bem do alto ou uma “birds-eye view”, a relação se mantém e a linha do horizonte segue na altura do olhar. Por isso, associamos a linha do horizonte ao eye-level ou “altura do olhar” do observador.
Como eu disse no começo do post, o Celestino do passado ia buscar a matemática da coisa, assim como na imagem abaixo, que no livro Perspective Made Easy foi propositalmente deixada para o último capítulo do livro.
Ela pode ser muito importante para quem aprende de forma mais racional, como eu, mas também pode afastar muitas pessoas que simplesmente se apaixonariam pela ideia de buscar o horizonte, perceber que acompanha o seu próprio olhar em diferentes alturas e que linhas paralelas das mais diversas formas tendem a convergir para os pontos de fuga.
Infelizmente o mundo não funciona como a imagem abaixo, onde a simplificação é bem conveniente para observação da perspectiva. Uma superfície super plana com elementos repetitivos que percorrem toda sua extensão, ficando muito mais fácil ver os pontos de fuga, convergência, mas podemos notar até um aspecto artificial, de exemplo didático.
No mundo real, serão múltiplos sistemas de pontos de fuga, além do observador estar olhando ligeiramente para cima ou para baixo, inserindo um terceiro ponto de fuga. Isso é papo para outro momento, mas já falei disso lá no Clube, caso a ansiedade bata.
Em ambientes internos, podemos também notar as relações entre observador, linha do horizonte, eye-level, convergência e pontos de fuga. Voltamos ao esquema da imagem debaixo d’água.
Fica a sugestão de uma experiência bem interessante de observar que tudo que está acima da linha do olhar do observador vemos os planos inferiores, como a parte interna do abajur (vista por baixo), ao mesmo tempo tudo que está abaixo da linha do olhar do observador vemos os planos de cima, como da base do abajur. Se você colocar uma fita na parede na altura do olhar, ela vai ser observada como uma linha reta, coincidindo com a linha do horizonte, como vemos na imagem acima.
Isso fica ainda mais claro se estivermos sentados em uma cadeira próximos a uma mesa, com o olhar por cima da mesa ou sentados no chão, com o olhar abaixo do tampo da mesa, como na imagem abaixo. A linha do horizonte muda com o eye-level, com a altura do observador. Se você tirar isso desse post todo, já valeu a pena.
É um processo bem mais lúdico e prazeroso de entender como o mundo ao nosso redor funciona e como podemos usar algumas ferramentas para representá-lo no plano bidimensional do papel. Experimentem e me contem o que acharam!
Dito isso, para quem tiver interesse na abordagem de aprendizado mais técnica/racional, criei esse guia de estudos utilizando os livros How to Draw e Framed Perspective 1, conteúdo que serviu de base para o meu antigo curso de perspectiva que ainda está público no canal, mas também vai fazer parte do Clube.
Outras sugestões de livros interessantes para o aprendizado, para os quais tenho reviews lá no canal se quiserem dar uma olhada:
Creative Perspective for Artists and Illustrators - https://amzn.to/4bs26SN
Successful Drawing - https://amzn.to/427vTwP
How to Draw: drawing and sketching objects and environments from your imagination - https://amzn.to/3mLOcFP
Framed Perspective 1 - https://amzn.to/4iTqz5R
Framed Drawing Techniques: Mastering Ballpoint Pen, Graphite Pencil, and Digital Tools for Visual Storytelling - https://amzn.to/3YKXcIh
Inclusive, para algumas pessoas, sugiro abordagens menos técnicas e mais aplicadas, como a do Eduardo Bajzek em seu livro Técnicas de Ilustração à Mão Livre. Aprendi muito sobre desenho com o Edu, então se você busca uma abordagem mais próxima da observação é uma ótima referência.
Em termos de cursos, fora o Clube que tenho “certo viés” para recomendar, aprendi muito do que sei de conceitos técnicos nas mais de 100 horas de vídeos do Erik Olson na New Masters Academy.
Erik Olson na New Masters Academy - https://www.nma.art/?ref=159
Espero que tenham gostado do conteúdo e se sentido inspirados para estudar mais perspectiva, seja com um viés lúdico ou mais técnico, seja focado na observação ou criação. Perspectiva por vezes pode parecer nossa inimiga, mas se olharmos da forma certa, aquela que funciona pra gente, ela pode ser uma aliada incrível!
Fiquem bem e bons estudos!